28/08/2007

festa dos bichos


Pardais em alvoroço, coelhos aos pulos, cavalos em trote, dançavam ao som da cigarra cantante.
Um gato dengoso, de cima da árvore, sussurrava à girafa, que entortava o pescoço, secretas histórias:

havia um cachorro, nascido Pastor alemão que vivia alegre atrás do próprio rabo. Por tanto tempo rodou que, ao parar, notou que perdera a direção. Como se não bastasse, tonto que ficou de tanto girar, confuso se viu sobre quem seria. Não suportou o vazio de sua condição, olhou para o Sol e identificou-se com sua grandeza. "Sou o Sol" pensou ele. Saiu pela floresta, acreditando o astro ser e topou com um leão. Observou seus gestos, notou sua soberania no reino animal e proclamou: "Sou um leão". O leão que avistara o pastor há algum tempo, cercou sua presa e o abocanhou.
Desfecho sem moral: Pastor, que se pensa Sol e imita Leão, mais cedo ou mais tarde vira refeição.

24/08/2007

Cervantes num Repente


Lá vai Quixote
carregando sua mente
dentro de um caixote
que o Real desmente.

Dulcinéia ele convida
pra que dancem um xote,
frente ao aceite com vida
responde com enxote.

Se Sancho ali estivesse

sutilmente o aconselharia
tal qual uma prece:
"Cuide bem dessa guria
antes que a trama se disperse
e mergulhe na alegria
que tua jornada desconhece"

Quixote, cansado do presente,
ilusionista do futuro,
ex-guerreiro doente,
um fidalgo maduro,
se colocaria ausente,
num refúgio no escuro,
pra responder ao ente
que o colocou contra o muro.

Responderia a Sancho, então,
o provocador mote:
"Vivo o tempo em expansão
e sei o avesso do meu caixote.
Você pode me ver sem razão,
embora de você eu discorde.
Cá em cima do meu alazão,
de onde avisto o Norte,
sei que acima de toda razão
existe algo que supera a morte
que é a coisa chamada Paixão.
Ela despoja o ser da sorte
de ter suas armas em mãos,
sob a promessa sem corte
que preserve o coração.
A realidade, Sancho, pode
indicar que a situação
exige suspender o galope
e "cair do cavalo"
pra manter minha ilusão."

20/08/2007

hiato




Som emite

Signo limite

Letra escoa

$ifra à toa

16/08/2007

Passada a tempestade ansiosa, seu estado poderia ser descrito como um leve alívio, misturado com um tanto de melancolia. Respostas surgiam à perguntas que não haviam sido formuladas, sem que se notasse com clareza a ordem das idéias.
Sabia de uma coisa: não queria compactuar com uma situação ambígua...
É como se o bonito sapato de salto mais alto, bico mais fino, fosse utilizado como sinônimo de conforto. Não é. É bonito inclusive para um contexto específico pois ir à praia de salto lhe soava como coisa caricata e desnecessária por completo.
Assim, apesar do guarda roupa solicitar um sapato de acordo, reparou que estava mesmo era a fim de colocar, no máximo, um chinelo (para o momento de solo mais duro, ou mais quente, ou por demais frio), mas no geral, preferia mesmo era andar descalça. Já era hora de descanso, para que os devaneios aportassem segura-mente.

11/08/2007

A vida é cinema

Há situações na vida em que o enredo nelas contido, funciona como um filme mais expandido em seu tempo de duração. No cinema, entramos para assistir um filme sabendo quanto tempo deveremos dispor para acompanharmos seu desenvolvimento. Alguma amarra no enredo deve ser feita num prazo médio de duas horas. Talvez seja este um dos fatores de sucesso desse tipo de arte: uma aventura com tempo marcado pra terminar. É, portanto, um mergulho seguro quando comparado, por exemplo, às relações afetivas. Neste último campo, o tempo é mais elástico, podendo durar de segundos a infindáveis anos.

Mas, tal qual no cinema, há tramas que desde o início já sinalizam um desfecho previsível, como boa parte dos filmes americanos. Estes, revelam uma lógica facilmente apreendida, meio batida, com poucas surpresas, mas que demandam uma escolha: ao pagarmos a entrada no cinema e sentarmos na poltrona, escolhemos "acreditar"que o filme nos acrescentará algo, nos provocará emoções impensáveis. Essa é a paga: o filme deve nos proporcionar sentimentos, apesar de conhecermos seu desfecho. A ênfase da experiência recai, então, ao trajeto e não ao ponto de chegada da obra.

Citei antes que devemos "acreditar" na trama para que aconteça o efeito no caldeirão das emoções. Mas, ao longo do enredo, "esquemos" desse acordo interno prévio (esquecimento este, repito, necessário para que aconteça a mágica da ebulição afetiva) e nos vemos logo tentando opinar sobre um final mais surpreendente do filme. Risco no saldo: saímos do cinema irritados com o roteirista, com o diretor e com toda a indústria cinematográfica americana!

Mas, passada a ira, já nos é possível lembrar do acordo inicial e passamos então à possibilidade de escolher melhor os filmes que merecem o investimento do preço da entrada.

10/08/2007

O homem; as viagens

por: Carlos Drummond de Andrade

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual a Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta

coloniza
civiliza
humaniza
Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem

idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.


Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para te ver?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar

civilizar
humanizar o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.