26/12/2007

Ode Aos Ratos

foto fonte: http://fotos.sapo.pt/OnZIUrG4tkrTBRLfcfzt/x43

Com inveja confessa publico o que o Chico conseguiu fazer, em 3min e 30 seg de música: um sensível tratado sobre o impacto da violência em nossas vidas.

Chico Buarque
Composição: Edu Lobo / Chico Buarque

Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

Vão aos magotes

A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu

Rato de rua

Aborígene do lodo
Fuça gelada
Couraça de sabão
Quase risonho
Profanador de tumba
Sobrevivente
À chacina e à lei do cão

Saqueador da metrópole

Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão

Rato

Rato que rói a roupa
Que rói a rapa do rei do morro
Que rói a roda do carro
Que rói o carro, que rói o ferro
Que rói o barro, rói o morro
Rato que rói o rato
Ra-rato, ra-rato
Roto que ri do roto
Que rói o farrapo
Do esfarra-rapado
Que mete a ripa, arranca rabo
Rato ruim
Rato que rói a rosa
Rói o riso da moça
E ruma rua arriba
Em sua rota de rato

10/12/2007

alterar-ação

Parte de mim é folha
Que do ar vem caindo,
Pela árvore largada.

Parte de mim é menino
Sentindo-se inteiro, feliz,
Fitando-se no olhar amado.

Parte de mim são flores,
Vermelhas e primaveris,
Celebradas por colibris.

Parte de mim é o homem,
Um forte pai protetor,
Cuidando de seus rebentos.

Parte de mim é o rapaz,
Em recatos e recantos
Em algum canto do jardim.

Parte de mim é o branco
Papel, poema em espera,
Um perfume de alecrim.

Parte de mim nem sabe,
de tantas partes vou feito,
o que mesmo sou, direito.

Eu só sei, Senhora, que,
De um ou de outro jeito,
Só seu, por inteiro, sou.
(Por: Gregor Mencken)




TUDO que no contato, mexe com tato,
Remexe a letra, contorce a rima,
Reverte a ampulheta:

Parte de mim é folha
de tantas partes vou feito,
em algum canto do jardim.

Parte de mim é o branco,
de um ou de outro jeito,
papel, poema em espera.

Parte de mim é menino,
que do ar vem caindo
Em recatos e recantos.


Parte de mim nem sabe,
um perfume de alecrim
cuidando de seus rebentos.

Parte de mim são flores
pela árvore largada,
parte de mim é o homem


Só seu, por inteiro, sou
o que mesmo sou, direito
Fitando-se no olhar amado

(por: Elaine)

25/10/2007

Des-conto



Olhou-a. Desejou-a. Aproximou-se.
Ela o via vagamente familiar e interessante.
Falaram de tudo um pouco, dizendo-se mutuamente.
O rumo da história se encarregou dos rompantes.

Ela: tempo sacro.
Ele: tempo inexistente: Mata-Dor.

Tentou matá-la no ato: futuro ausente.
Ela se fez presente.

Despediram-se a tempo de manterem-se
tal como antes do encontro.
Triunfo do passado dormente.

22/10/2007

aportar...


Subiu as escadas escuras daquele prédio cheio de esquinas. Não sabia ao certo qual o andar, tão pouco qual o lugar. Mas seguiu. Parou em frente a uma porta. Desconhecia a maneira como se deu essa escolha; algo nela sabia que era aquela a passagem. Tentou a entrada girando a maçaneta. Estava trancada. Bateu. Bateu mais forte. Nada. Bateu até sentir que os punhos lhe doíam e as unhas já marcavam a carne, de certa forma. Uma voz, lá de dentro, disse: Está aberta, entre. Girou a maçaneta novamente; nada. Bateu novamente. A mesma voz, um tanto irritadiça, respondeu: Já disse que está aberta, entre! Tentou. Nada. Um tanto confusa, sem saber em qual verdade se pautar, se na versão da voz de dentro ou na realidade vivenciada com dificuldade, parou um tanto seus movimentos. Insistir se traduziria na crença de que poderia abrir uma porta que não abriu anteriormente. Insano, pensou. Desistir não lhe era concedido. Estava fadada a tentar. Resolveu procurar um meio, uma chave, talvez alguma dos chaveiros antigos que carregava junto a si. Fez uma prévia seleção pela forma, analisou espessura e história. Tentou várias até que uma delas entrou. Mas não girou. Se forçasse não adiantaria. A chave se partiria, inutilizando a abertura - uma minúscula fenda que interligava dois mundos. Procurou outras chaves em sua bolsa. Nenhuma parecia se encaixar à necessidade. Encontrou num grampo, perdido num fundo falso da bolsa, o pensamento mágico da transmutação. Lembrou dos filmes em preto e branco da infância e da promessa de saída com final feliz. A porta lhe era familiar, mas seu colorido, estranho. O grampo não serviria. Tinha conhecimento que finais felizes não existiam: O final é a Morte, inexoravelmente. Sabia que felicidade se constitui no hiato entre o medo do nascimento de algo e seu término trágico.

Do grampo, passou à tampa da caneta. Entortou a tampa, a caneta e a escrita; e nesse instante pensou vislumbrar uma luminosidade diferente no interior do recinto vedado pela porta que se mantinha, hermeticamente, fechada. Estava a ponto de desistir. Cansada... A Voz de dentro pareceu notar o intervalo expandido nas tentativas e questionou: E aí, desistiu? Nesse ponto, a confusão era tamanha que não havia possibilidade de ouvir essa fala sem um viés irônico. Uma pergunta genuína parecia um deboche. Brigou com a voz. A voz se posicionou: Sei que é possível abrir, com quê recurso, não sei. Você tentará inúmeras vezes, fará do engano o mote que desvela sua pretensa vigília. Adormecerá estranha para acordar diferente em alguns momentos.

Como num corte de tempo, de repente se deu conta da existência de outras pessoas circulando pelo corredor daquele edifício. Há quanto tempo estariam estas pessoas ao redor, sem que nunca as tivesse notado? Decidiu-se por interpelar um dos transeuntes a fim de auxiliá-la. O primeiro garantiu: Tenho a chave... Era um homem que emanava convicção e profundo conhecimento de fendas e seus derivados. O contato lhe possibilitou pensar no outro com sua porta, descobertas e entraves. Desfrutou de sua presença, até perceber que essa união só se manteria se desistisse de lembrar de sua própria porta. Com muita dor, cônscia da solidão que se instalaria, pediu ao ilustre transeunte que se afastasse.

Outros vieram e, no contato, tentava identificar o que importa... Ficar junto a algumas daquelas figuras, era, por vezes, gratificante. Regularmente escutava rumores do recinto contíguo separado pela porta. Percebeu que o outro é parte da chave. Tratou de se olhar com crítica, mas com uma certa tolerância e compaixão.

Então houve um que não a inquiriu, nem julgou e nada lhe prometeu, mas a ela devotou o espelho da alma que atrela dois seres pela supremacia de suas diferenças; abriu o campo da fala da falta confessa em cada um, realizando o prazer do encontro na troca. Cada ínfimo detalhe parecia apontar para o contrário de tudo que pensara sobre si e nesse instante, como por mágica, a Porta se abriu
.

20/10/2007

ciclo



serviu-se do vinho
sentiu-lhe o rosto
deu-lhe uma das faces
retirou-se em repouso

retornou exposto
mostrou-se outro
propôs impace
voltou sozinho

09/10/2007

Jorge Luis Borges



“bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que bons autores”

08/10/2007

Todo dia




Nunca renegue a melodia
Mesmo quando o dia
dela se esquece
Noite a noite
Sente em frente
olhe no olho
Não se apresse
Não finja gozo
Não forje um gosto
na pressa para que
o coração se aqueça
Respeite contornos
Descubra atalhos
Poupe latim

Canalize saliva
se o ato te pede
suspiro e carícias
Cative espaços
Avance sinais

Conheça seu lastro
Aporte noutro cais

07/10/2007

caos

remove mídia
sai da média
move princípios
transpõe tragédia

30/09/2007

Extra!




Chico Buarque dispensa apresentação, certo? Errado! Há anos ouço suas músicas e quando alguém me pergunta: "conhece aquela?" é comum eu já responder cantando, do tipo: "claro que conheço!" No entanto, essa semana ouvi "Terezinha" como nunca antes. Sou encantada pelo modo que ele descreve três impactos diferentes de enamoramento na canção. A melodia me remete inevitavelmente à infância, momentos dos primeiros amorores e rancores de minha vida. Então, acreditava conhecer a música Terezinha de trás pra frente, mas.... a vida é mesmo uma caixinha de surpresas...
Enquanto desempenhava meu lado "jarbas" no volante, o Chico cantava no carro. De repente, entrou a faixa "Terezinha" do cd e qual não foi minha surpresa ao me flagrar prestando mais atenção à melodia e entrada dos instrumentos musicais. Impressionante!! O "primeiro" chega à "Terezinha" ao som de violão apenas; ao entrar "o segundo" parceiro da Terezinha, o violão de antes passa a ser acompanhado por um piano; mas é somente no "terceiro" que o sopro de vida da flauta se junta aos outros dois intrumentos para finalizar a contento o enredo. Fiquei passada com a nova "Terezinha" que ouvia no velho cd. Sem esforço nem concentração mas simplesmente o surgimento do novo no velho...

24/09/2007

lunático

Mr.Moon era um homem enigmático. Vezes agregava gente. Cultivadas, nem sempre as mantinha. Não era de fácil abordagem. Na fala anunciava abruptamente recônditos semelhantes ao quarto escuro do Barba-Azul. Nichos fecundos. Guardado em si... Era de várias facetas: ora pleno, brilhante, marcante... ora surpreendente, novo, criativo... Noutras expansivo, emitindo flashs para todas as direções...Também resguardado, minguado, de difícil acesso...Era isso! Mr. Moon era um lunático! E como tal seu humor oscilava e se manifestava conforme as irradiações de seu satélite natal. Porém o que poucos sabiam, é que ainda assim, era ele a chama clara que iluminava e norteava o caminho dos errantes sob o escuro manto da noite.

23/09/2007

Drummond

GUSTAV KLIMT


"O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente."

fronteira



"Se é exatamente na fronteira do não-eu que se percebe o eu, por que não seria na fronteira da não-vida a descoberta da vida?"

(por Ivan Hegenberg)

09/09/2007

des-peço-te!

Meu querido,

Escrevo esta carta numa tentativa de me despedir de você, mais uma vez... estamos juntos há muito tempo, você acompanhou bem de perto vários momentos diferentes na minha história... me viu crescer e sempre esteve à mão nas circunstâncias mais difíceis e nas mais felizes também.
Através de você, conheci muita gente interessante... sua simples presença abria caminhos para assuntos variados.
Nos separamos algumas vezes e sempre era "pra sempre", mas então... você voltava pra perto, como se nada quisesse, me prometendo momentos de raro prazer. E eu sempre fantasiava não depender de você.
Era ótimo ter você por perto depois das refeições... vc deixava qualquer degustação completa, mesmo quando a comida não era lá grande coisa.
Desculpe-me por não tê-lo deixado entrar no meu quarto... somente em outros quartos nossa intimidade esteve assegurada.
Mas, temos que admitir que nem tudo é eterno. Você tem me deixado sem fôlego e seu aroma não mais me seduz como antes. O gosto que vc me deixa na boca me incomoda... tua presença me impregna!
Não sou mais aquela mocinha inocente que você conquistou. A idade trouxe a maturidade e a vontade de viver por mais tempo. É chegada a hora de nos despedirmos eternamente! Cá dentro, você deixou marcas irreparáveis talvez. Não mais te procurarei e farei de conta que não te vejo, mesmo quando sentir imensamente a sua falta!!!
Adeus Free maço! Adeus Free Box!

06/09/2007

frestas do Poeta

"O que quer uma mulher?"
É uma das perguntas que Freud se fez, que Lacan se debruçou, que Serge André dissecou, mas foi Chico Buarque quem descreveu o mais genuíno impacto dessa indagação na subjetividade de um menino.

"Você, você - Uma canção edipiana" (Guinga / Chico Buarque)

Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
Que bicho feroz são seus cabelos
Que à noite você solta?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?
Seu beijo nos meus olhos, seus pés
Que o chão sequer não tocam
A seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta

Onde é que você some?
Que horas você volta?
Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?
Me sopre novamente as canções
Com que você me engana
Que blusa você, com o seu cheiro
Deixou na minha cama?
Você quando não dorme
Quem é que você chama?
Pra quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça?
E à noite pra quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga,
que horas, me diga
Que horas você volta?

28/08/2007

festa dos bichos


Pardais em alvoroço, coelhos aos pulos, cavalos em trote, dançavam ao som da cigarra cantante.
Um gato dengoso, de cima da árvore, sussurrava à girafa, que entortava o pescoço, secretas histórias:

havia um cachorro, nascido Pastor alemão que vivia alegre atrás do próprio rabo. Por tanto tempo rodou que, ao parar, notou que perdera a direção. Como se não bastasse, tonto que ficou de tanto girar, confuso se viu sobre quem seria. Não suportou o vazio de sua condição, olhou para o Sol e identificou-se com sua grandeza. "Sou o Sol" pensou ele. Saiu pela floresta, acreditando o astro ser e topou com um leão. Observou seus gestos, notou sua soberania no reino animal e proclamou: "Sou um leão". O leão que avistara o pastor há algum tempo, cercou sua presa e o abocanhou.
Desfecho sem moral: Pastor, que se pensa Sol e imita Leão, mais cedo ou mais tarde vira refeição.

24/08/2007

Cervantes num Repente


Lá vai Quixote
carregando sua mente
dentro de um caixote
que o Real desmente.

Dulcinéia ele convida
pra que dancem um xote,
frente ao aceite com vida
responde com enxote.

Se Sancho ali estivesse

sutilmente o aconselharia
tal qual uma prece:
"Cuide bem dessa guria
antes que a trama se disperse
e mergulhe na alegria
que tua jornada desconhece"

Quixote, cansado do presente,
ilusionista do futuro,
ex-guerreiro doente,
um fidalgo maduro,
se colocaria ausente,
num refúgio no escuro,
pra responder ao ente
que o colocou contra o muro.

Responderia a Sancho, então,
o provocador mote:
"Vivo o tempo em expansão
e sei o avesso do meu caixote.
Você pode me ver sem razão,
embora de você eu discorde.
Cá em cima do meu alazão,
de onde avisto o Norte,
sei que acima de toda razão
existe algo que supera a morte
que é a coisa chamada Paixão.
Ela despoja o ser da sorte
de ter suas armas em mãos,
sob a promessa sem corte
que preserve o coração.
A realidade, Sancho, pode
indicar que a situação
exige suspender o galope
e "cair do cavalo"
pra manter minha ilusão."

20/08/2007

hiato




Som emite

Signo limite

Letra escoa

$ifra à toa

16/08/2007

Passada a tempestade ansiosa, seu estado poderia ser descrito como um leve alívio, misturado com um tanto de melancolia. Respostas surgiam à perguntas que não haviam sido formuladas, sem que se notasse com clareza a ordem das idéias.
Sabia de uma coisa: não queria compactuar com uma situação ambígua...
É como se o bonito sapato de salto mais alto, bico mais fino, fosse utilizado como sinônimo de conforto. Não é. É bonito inclusive para um contexto específico pois ir à praia de salto lhe soava como coisa caricata e desnecessária por completo.
Assim, apesar do guarda roupa solicitar um sapato de acordo, reparou que estava mesmo era a fim de colocar, no máximo, um chinelo (para o momento de solo mais duro, ou mais quente, ou por demais frio), mas no geral, preferia mesmo era andar descalça. Já era hora de descanso, para que os devaneios aportassem segura-mente.

11/08/2007

A vida é cinema

Há situações na vida em que o enredo nelas contido, funciona como um filme mais expandido em seu tempo de duração. No cinema, entramos para assistir um filme sabendo quanto tempo deveremos dispor para acompanharmos seu desenvolvimento. Alguma amarra no enredo deve ser feita num prazo médio de duas horas. Talvez seja este um dos fatores de sucesso desse tipo de arte: uma aventura com tempo marcado pra terminar. É, portanto, um mergulho seguro quando comparado, por exemplo, às relações afetivas. Neste último campo, o tempo é mais elástico, podendo durar de segundos a infindáveis anos.

Mas, tal qual no cinema, há tramas que desde o início já sinalizam um desfecho previsível, como boa parte dos filmes americanos. Estes, revelam uma lógica facilmente apreendida, meio batida, com poucas surpresas, mas que demandam uma escolha: ao pagarmos a entrada no cinema e sentarmos na poltrona, escolhemos "acreditar"que o filme nos acrescentará algo, nos provocará emoções impensáveis. Essa é a paga: o filme deve nos proporcionar sentimentos, apesar de conhecermos seu desfecho. A ênfase da experiência recai, então, ao trajeto e não ao ponto de chegada da obra.

Citei antes que devemos "acreditar" na trama para que aconteça o efeito no caldeirão das emoções. Mas, ao longo do enredo, "esquemos" desse acordo interno prévio (esquecimento este, repito, necessário para que aconteça a mágica da ebulição afetiva) e nos vemos logo tentando opinar sobre um final mais surpreendente do filme. Risco no saldo: saímos do cinema irritados com o roteirista, com o diretor e com toda a indústria cinematográfica americana!

Mas, passada a ira, já nos é possível lembrar do acordo inicial e passamos então à possibilidade de escolher melhor os filmes que merecem o investimento do preço da entrada.

10/08/2007

O homem; as viagens

por: Carlos Drummond de Andrade

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual a Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta

coloniza
civiliza
humaniza
Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem

idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.


Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para te ver?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar

civilizar
humanizar o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

30/07/2007

síndrome de Gabriela

Lembra aquela música "Eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim, vou ser sempre assim: Gabriela"? Então, essa compulsão a repetição dos vínculos afetivos está retratada no filme "Medos Privados em Lugares Públicos". O filme é enfadonho! Nas últimas cenas até dei uns cochilos... Olhei ao lado e a platéia estava, no geral, amontoada nas poltronas do cinema. Foram duas horas de longa tortura presenciando a mesma trama vivida pelos personagens, que trocavam de parceria, sem alterar a forma das relações. Interlocutores pareciam roupas, que se trocam sem alterar o corpo. Alí no cinema, perdi duas horas e R$14,00 da entrada. Mas o chocolate quente, servido no café do cinema, estava ótimo!
O filme retrata, de maneira fiel, o aprisionamento psíquico dos personagens da trama, assim como a ausência de comunicação dos elementos conflitivos que surgem do contato entre os envolvidos. Não há comunicação efetiva, há esbarrões entre os personagens. Seria uma comédia da vida privada se não fosse tão triste... Termina como começou: muito discurso pra pouca fala. Como o filme não aponta nenhuma saída, depois de uma hora e tanto eu estava era com muito sono... Muito refém pra pouco crime. Mas... fidedigno.

27/07/2007

Sobre a origem da poesia

Por Arnaldo Antunes em "12 Poemas para dançarmos"

A origem da poesia se confunde com a origem da própria linguagem.Talvez fizesse mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia. Ou: qual a origem do discurso não-poético, já que, restituindo laços mais íntimos entre os signos e as coisas por eles designadas, a poesia aponta para um uso muito primário da linguagem, que parece anterior ao perfil de sua ocorrência nas conversas, nos jornais, nas aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios ou telefonemas.Como se ela restituísse, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa — que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da história.
A manifestação do que chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades — significante e significado. Houve esse tempo? Quando não havia poesia porque a poesia estava em tudo o que se dizia? Quando o nome da coisa era algo que fazia parte dela, assim como sua cor, seu tamanho, seu peso? Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras? Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado.
Lembro-me de ter lido, certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo ser, enquanto verbo de ligação. Assim, o ser das coisas ditas se manifestaria nelas próprias (substantivos), não numa partícula verbal externa a elas, o que faria delas línguas poéticas por natureza, mais propensas à composição analógica. Mais perto do senso comum, podemos atentar para como colocam os índios americanos falando, na maioria dos filmes de cowboy — Eles dizem "maçã vermelha", "água boa", "cavalo veloz"; em vez de "a maçã é vermelha", "essa água é boa", "aquele cavalo é veloz". Essa forma mais sintética, telegráfica, aproxima os nomes da própria existência — como se a fala não estivesse se referindo àquelas coisas, e sim apresentando-as (ao mesmo tempo em que se apresenta). No seu estado de língua, no dicionário, as palavras intermediam nossa relação com as coisas, impedindo nosso contato direto com elas. A linguagem poética inverte essa relação pois vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo.
Segundo Mikhail Bakhtin, (em "Marxismo e Filosofia da Linguagem") "o estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia contemporânea das significações levam-nos a uma conclusão acerca da chamada 'complexidade' do pensamento primitivo. O homem pré-histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o baixo, a terra e o céu, o bem e o mal, etc". Tais usos são inteiramente estranhos à linguagem referencial, mas bastante comuns à poesia, que elabora seus paradoxos, duplos sentidos, analogias e ambiguidades para gerar novas significações nos signos de sempre. Já perdemos a inocência de uma linguagem plena assim. As palavras se desapegaram das coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. Mas temos esses pequenos oásis — os poemas — contaminando o deserto da referencialidade.

Incluído no libreto do espetáculo “12 Poemas para dançarmos”, dirigido por Gisela Moreau, São Paulo

23/07/2007

marcas do trágico

"A minha renuncia, enche minh'alma e o coração de tédio. A tua renuncia, dá-me um desgosto que não tem remédio. Amar é viver, é um doce prazer, embriagador e vulgar. Difícil no amor, é saber renunciar!"(Roberto Martins e Mário Rossi)

Amor... palavra utilizada amplamente para tentar significar laço, vínculo. Infelizmente, tão utilizada para se referir a tantos sentimentos diferentes que até se banalizou. A importância do amor nas relações é algo recente.
Tudo começou por volta do século XII, quando os poetas cantavam o amor proibido à mulher amada. O alvo de amor do poeta era uma mulher casada, nobre, linda e totalmente fora de alcance. Os respectivos maridos não se sentiam ameaçados com as declarações públicas. O que sustentava o casamento nada tinha a ver com essa coisa chamada Amor. Isso era coisa de poeta.
Mas como tudo que é efetivo em qualquer história, a corrosão do amor, dentro da instituição família, foi acontecendo lentamente... Esse sentimento passou a ser considerado fundamental no Romantismo, lá pelo século XVIII. Mas os românticos ainda carregavam a herança do amor trágico onde o objeto de amor continuava sendo proibido, sendo este o elemento de base nas construções poéticas. O amor tinha que ser intenso, violento e trágico.
Apesar de sermos filhotes do Romantismo, vivemos num período Pós Moderno e temos demandas diferenciadas do século XVIII. Tanto o homem quanto a mulher precisam caminhar com as próprias pernas... A dama já não deve ficar esperando no alto da torre seu caveleiro dourado. Já não é possível sustentar o equivalente trágico do romantismo. Chega o tempo do amor a ser construído em sua possibilidade de existência. A mulher não é proibida porque existe o divórcio. Aparentemente o mundo ficou mais simples, descrito assim. No entanto, a herança do trágico permeia a construção subjetiva dos amantes onde o sacrifício continua tendo um lugar dentro das relações. Sacrifício e flexibilidade geralmente ainda não se diferenciam tão fácil.
O amor não é vulgar, ele traz vivências efêmeras com uma possibilidade de registro sublime, dentro de uma construção permanente. Em poucas palavras, Calligaris descreveu o amor entre homem e mulher na expressão "é quase impossível ficar sem você", muito diferente do apego que poderia ser formulado como "preciso Ter você". A ausência do objeto amado gera uma dor muito específica no amante.
Então, sem pretenção de dissecar o trecho poético descrito acima, nessa versão parece que o amor deve conter renúncia, sendo esta sinônimo de "tédio e desgosto". Que amor tedioso e desgostoso é esse? Será que é amor? Essa descrição mais se assemelha à falta de amor que com a presença dele.
Sob o risco de distorção da poesia, peço perdão aos poetas... mas os tempos mudaram

efeito Elsa & Fred



Assisti o filme Elsa & Fred há alguns dias. Hesitei várias vezes antes de me decidir por pegar esse filme na locadora, aparentemente se tratava de mais uma comédia "água com açucar". Ledo engano. Conta a história de uma senhorinha muito simpática que leva às últimas consequências a idéia de vida, sapiente de sua condição de morte próxima. Elsa conhece Fred, um viúvo que se muda para o apartamento em frente ao seu. Fred está deprimido pela perda da esposa há poucos meses.
Elsa propõe lentamente que se conheçam e logo começa sugerir aventuras que possam vivenciar juntos.
Fred a chama de louca e, apesar de sinalizar toda a dificuldade em sair do estilo de vida cultivado como certo e saudável, começa a se permitir viver situações inusitadas em sua vida até então "certa demais"... um tanto monótona e desprovida de sentido fora da sensação de "dever cumprido".
Inevitavelmente pensei na maioria das relações conjugais que conheço. Relações "seguras", de continuidade garantida sob a certeza de permanência do outro, "por e apesar" de qualquer eventualidade. Relações "certas", "direitas", postas. Nenhum dos envolvidos precisa se esforçar por fazer acontecer nada de diferente ou por comunicar regularmente no quê o outro lhe é instigante, curioso.... É terrível quando num casal se estabelece a sensação de esgotamento, explícita na frase: "como te conheço bem!". Que ilusão! Infelizmente este fenômeno recorrente expressa água parada... e a vigilância sanitária alerta: água parada gera bicho!
Mas o fenômeno Elsa & Fred se refere ao oposto desse malogro. Sugere a necessidade humana da invenção, da criação, da necessidade de cavarmos espaços nas nossas relações para que possa surgir o inusitado, o que não imaginamos possível sermos.
Saber dessa necessidade implica na responsabilidade de se implicar nessa rota ou se decidir por ignorá-la. Nesse sentido, a indústria farmacêutica pode ser últil com seus inúmeros placebos que aplacam a dor por ter vislumbrado outra forma de vida.

15/07/2007

Sedução

por: Flora Figueiredo

A vida mostrou seu decote profundo
na esperança vã de seduzir o mundo.
Passou despercebida.

Por mais que ela insista,
não se lhe oferece chance de conquista.
Mas vale a tentativa:
Só quando a vida ousa, permanece viva.

13/07/2007

poema a 4 mãos

Difícil de dizer
pois a lingua falha
as vezes cala
em meio a outras malhas
talvez de lençois e travesseiros
por entre colchas e retalhos
os encontros se fazem
de atropelos
mas entre os zelos da malha
aquela que aquece, por fim
Há a grande palavra CORPO
(por Adri Machado)

Se a boca fala
e a língua cala,
nos retalhos da malha
um zelo não se entalha.
O corpo empalha
e a alma encalha
no fio da navalha.
(Por Elaine)

08/07/2007

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Seu jeito de gostar. Um modo de sugerir algo que desperta o paladar, um cheiro. Coisa de cinema. E eu que nem gosto de filme americano onde tudo é explícito, explicável e corroborável. Mas sua forma confunde, tal filme iraniano. E eu no explícito gostar italiano. Seu idioma sutil de palavras com saídas à francesa, retira o refúgio no campo dos símbolos que aplacam incertezas.
"Preciso" apreender suas línguas.

27/06/2007


Não há mais gênios na atualidade porque existe a indústria farmacêutica com seus psicofármacos.
Beethoven estava surdo quando compôs a 9a. sinfonia e também considerado totalmente louco por se apresentar rústico, excêntrico, arrogante, "sem qualidade de vida". Seu mundo relacional era caótico e esse caos só encontrava escoamento na música. Era divina sua imensa sensibilidade para transformar sensações e sutis percepções em linguagem musical.
Ele dizia não ser possível ver Deus, apenas ouvi-lo através da música.
E como já cantou Raul: "E pra aquele que me provar que estou mentindo, eu tiro o meu chapéu".
São inúmeros os caminhos a R O M A.





25/06/2007

Em tempo

Li uma notícia de que cinco jovens teriam agredido uma empregada doméstica às cinco da manhã, num ponto de ônibus, pensando se tratar de uma "vagabunda". Foi essa a "justificativa" dos meninos que têm em média 20 anos, moram em bairros nobres do RJ e levam uma vida, aparentemente, "normal".

A notícia deixa a sugestão que os "bad boys" teriam saído de uma rave e talvez estivessem alcoolizados o suficiente para que não possam responder responsavelmente pelo ocorrido. Ora, a bebida alccolica não cria nada, ela pode apenas rebaixar a crítica ou o auto-controle para que o que está latente encontre saída. Portanto o alcool nada cria de novo no psiquismo, somente "procria" o que fica guardado em compartimentos secretos. [A mesma construção de raciocínio poderia ser usada para pensarmos a TPM, apesar de se tratar de outro tipo de fenômeno, mas isso é papo pra outro post...]

É importante encontrarmos um lugar de pertencimento, de acolhida, de companheirismo e cumplicidade, tal qual esses jovens encontraram em seu meio. É bom termos amigos passionais... mas a cumplicidade do grupo em questão se revelou frágil ao serem confrontados com o resultado de seus atos. O primeiro moço encontrado pela polícia já delatou todos os outros. Abrem-se perguntas: Pra que "serve" um amigo? Até que ponto um amigo pode ser visto como cúmplice de algo que alguém decide fazer?

A construção de posicionamento responsável diante do outro, traduz-se num processo pra uma vida inteira. Esses jovens parecem estar há anos luz de distinguirem um outro que não seja a própria fantasia que se interpõe inevitavelmente ao se "ler" uma outra pessoa. O ocorrido com a moça no ponto de ônibus, delata uma fantasia da divisão clássica entre a "mulher santa e a puta", uma divisão que começa na infância do psiquismo masculino, que se preserva em imagens totais, e as vezes não encontra um desfecho favorável pro resto da vida.

Parece que os meninos justificaram o ato como: "desculpa aí, pensei que fosse uma vagabunda, não sabia se tratar de uma mulher que estava no ponto de ônibus pra ir no médico, porque, se fosse a prostituta, tudo se esclareceria, não?" Pra mim isso ainda choca! E sempre chocará porque não se trata de algo que se deve "acostumar", ainda que vigore dentro da "norma", do que há de comum na cultura vigente.

Será que alguma das gerações futuras poderá lidar melhor com essa cisão no afeto? Paralelamente existe uma quantidade significativa de mulher que veste um desses personagens na vida pública (e privada), reforçando essa fantasia purista da "santa" ou da "puta". Ninguém É santa ou puta, bandido ou herói, mas há quem se descreva e se posicione dentro de alguma dessas categorias maniqueístas, pra tentar se fazer reconhecer e respeitar, amar, pelo outro.

O imbróglio está posto: a camisa-de-força da famigerada "normalidade" privilegia certas ações (ou ações certas), esconde motivações e vela intensões que se constroem dentro das famílias, primeira célula social. É evidente que não funciona o "termômetro de sucesso" do ocidente que se norteia pelo êxito profissional e financeiro, entre posses, poses e rendas. Tudo que é visto como normal é apenas um constructo cultural em que a maioria está de acordo. É só isso. Antes desse ato bárbaro praticado por esses jovens, eles eram moços portadores de preconceitos (conceitos previamente engolidos e não mastigados) existentes em seus frágeis psiquismos "normais".

Mas creio num tempo futuro, no qual a honestidade possa, acima da verdade, vigorar nas relações a fim de lidarmos com o que produzimos, seja lá o que for, como disse Renato Russo: "não adianta querer mudar o mundo, temos que mudar a gente".

24/06/2007

do meu gosto




gosto de gente que tem gosto de gente
gente que tem gosto também traz desgosto
mas deixa um gosto de rosto que ninguém tem.

16/06/2007

Tributo ao Aparelho de Poesia

Pra quem não sabe, o Aparelho de Poesia é um evento que acontece todo mês no Caleidos Arte & Ensino. O Fábio elege um tema e sai fazendo uma pesquisa ampla que termina em leituras singulares compartilhadas. O poema abaixo estava inscrito no último evento... A propósito, o último Aparelho teve como tema "Sexy, Erótico e Pornô". Por ser um tema ousado, embora muito "usado", a presença foi baixa... Passados muitos anos desde o desvelamento dos segredos da sexualidade humana por Freud, parece que o tema ainda é tabu... infelizmente.

TESES
(de Paulo Leminsky)

eu
isóceles
você
ângulo
hipóteses
sobre meu tesão

teses
sínteses
antíteses
vê bem onde pisas
pode ser meu coração

15/06/2007

Mário Quintana

"sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas"

ser ia

Seria a fala algo palpável?
Seria se o corpo for inflamável
Seria o amor algo rentável?
Sério não sei se seria

11/06/2007

vazamento

Há algum tempo ouviam aquele barulho vindo do banheiro, um gotejar incessante, daqueles barulhos que, se não se toma cuidado, acaba acostumando os ouvidos. Era só pintar um silêncio mais prolongado que o barulho entrava em evidência.
Outro indicador era a conta da água, cada mês mais alta. Vazamentos não cuidados geram custos desnecessários e permanentes.
Ele tomou a iniciativa para abordar a questão:
_ Tá ouvindo?
_ Tá ouvindo o quê?
_ Esse gotejar que não pára! Barulho irritante!
_ Não tô ouvindo nada...
Ela sustentava a fantasia de que, enquanto não admitisse o barulho frente a ele, pudessem fazer de conta que o mesmo não existia. E estava funcionando bem! Colocavam música, ligavam a TV, permaneciam horas frente ao computador sem que as teclas deixassem de serem apertadas, falavam ao telefone, enfim ia tudo “muito bem”, até ele tocar naquele assunto.
_ Vou chamar um encanador – insistiu ele.
Ela se fingia de morta. Ele acreditava que ela estivesse mesmo, morta.
_ Já sei – disse ele - é só sairmos várias vezes de casa e nunca mais teremos tempo de ouvir o tal barulho.
E assim fizeram. Até começarem a ouvir o gotejar no cinema, no teatro, no barzinho...

tu

Sinto tremores. Olhos fixos. Os meus nos seus. Meu campo visual se restringe. Confusão. Entorno barulho. Tambores estouram. Dentro. Não sustento o olhar. Desvio. Você me procura. Você me convida quando sorri. Eu fico. E me deixo. Você me leva sem sairmos do lugar. Não quero saber onde. Soam sirenes, você está em todos os seus pedaços. Despedaço. Palavras não dão conta. Insistimos. Fala. Falo. Bebo. Bebe. Corpos misturados. Não queremos que acabe. Não sabemos continuar. Despeço. Vou dormir. Seu olhar me dorme na vigília.

tez

Tecido o amor
Em teia do humor
Ateia a tez

Humor só com amor
Amor só com humor

O humor e o amor
Deram-se as mãos
Pegam-se em mãos
Brincam e brigam
Reconstroem a ilusão.

Os Incríveis e a Psicanálise

Li o texto da Maria Helena Fernandes sobre as complicações da mulher moderna na tentativa dos ajustes dos ideais na administração da vida, entitulado "A Mulher- Elástico". Penso que, além dos ideais enaltecidos pela cultura ocidental, tal qual o ideal de corpo magro citado, cada fragmento da cultura – grupos de pertencimento - privilegia alguns aspectos de manifestação ideal. Inevitavelmente assistimos ao filme no final de semana com as crianças e o evento se torna um meio propício pra discussões infindáveis, tal como Maria Helena citou. Sem cair no ridículo do maçante, pra não “matar a obra”, a linguagem dos filmes da Pixar parece evocar estímulos em níveis variados para a conversa em casa.

No filme Os Incríveis, são retratadas as várias crises que podem coabitar uma mesma constelação familiar. Cada um dos personagens foi descrito em sua peculiaridade psíquica e inter-relacional. É interessante observar como se estrutura a corrente com cada um dos elos que compõem essa cadeia familiar. A mudança de um dos membros – O Sr. Incrível – deflagra a necessidade de mudança sentida por todo o grupo. É incrível como tendemos a um estado de morbidez quando nos afastamos do que essencialmente compõe nosso desejo. As relações ficam “gastas”, o cotidiano se revela com peso e o brilho da vida fica confinado à obscuridade, como sinônimo de contravenção.

È interessante notar no filme, que a Mulher-elástico parece ser a primeira a “se adaptar” às solicitações da vida comum – e nem por isso menos importante – do trato com os filhos, da arrumação da casa, da necessidade da receita regular de quem provê o lar, da comida, do carinho, da constância. No entanto, assim que se torna explícita uma nova configuração, lá está ela antenada buscando uma interlocução que a confronte, ilustrada no filme através da intervenção da estilista “bageriana”. Faz as malas, carrega os filhos “sem perceber” a fim de lidar com a nova configuração.

Em posse do lugar elástico que a define, percebe que a autonomia da filha esteve prejudicada uma vez que a menina invisível não se encontrava em posse de suas habilidades, talvez à espera que a mãe retire a “mulher elástico” do armário, em busca de um modelo outro de identificação, que não o “puramente” materno.

É certo, como ressaltou a Maria Helena em seu texto, que a mulher moderna esteja se sentindo perdida em culpa na falta de cumprimento da rota de seus inúmeros anseios e demandas do meio. Mas talvez, por enquanto, ainda não esteja muito clara ao universo cultural masculino, a necessidade de exercitar a flexibilidade em detrimento da força ressaltada em todos os tempos. A mulher moderna deve ter força e flexibilidade, e o homem moderno?
As próximas gerações talvez nos respondam, ou talvez elaborem outras perguntas.

07/06/2007

enquanto isso, na natureza...

Não sei se assisti num filme ou li na Veja essa observação: Há uma espécie de pássaro que emite um lindo canto quando se motiva pela dança do acasalamento. A fêmea da espécie se aproxima afetada e emite algumas notas em concordância para que o encontro seja possível. A troca de canto se perpetua em simultânea aproximação física. No entanto, os especialistas observaram que, por alguma razão desconhecida, o macho estanca seus movimentos de aproximação e continua emitindo os sons concordantes, como se encantado da própria voz. A fêmea mantém o canto e o esforço na direção de encontro do macho na mata. Os pesquisadores notaram que algumas fêmeas localizam os machos da espécie e outras os perdem de vista, camuflados entre os próprios galhos.

05/06/2007

news

Foi um tempo
ar parado
idéias revoltas
ato cansado

Ares em luta
ato em arco
idéia resulta
passado enterrado

02/06/2007

:

Palavras amorosas nunca se atrelam à injúria da verdade, mas há que se erradicar no amor a falta de honestidade.

!

Curioso: O curió só cuidou de si quando só se viu.

30/05/2007

vocação

Onde invoco
Equívoco
Como evoco
Espanto
Vem o troco
Estanque
Pára a voz
No Oco.

29/05/2007

opacidade

"Espelho, espelho meu
Existe alguém mais belo que Eu?"
O espelho, já inconformado com tamanho auto-desconhecimento do sujeito responde:
"Não, alteza, tu és o magnânimo em Sua beleza."

28/05/2007

Beatriz

Bem te vi Helena
balbuciar fragmentos
ensaios de línguas
pontes entre estados.

Bem te vi à minha frente
cambalear sem dentes
cabecinha pendente
sorriso amplo

Bem te vi
alçar voos ousados
conquistar espaços
sair dos meus braços
à procura de gente

Quero te ver, meu presente,
na tua alquimia
de sentir e perceber
uma liga diferente
no mundo existente
que você reinventa
quando olha e comenta
sem a pretensão
de me comover.

Quero ouvir seu canto
abra seu bico,
me deixe em espanto!
Dance sobre o mundo
Ria a valer!
Chore também
quando preciso for
pra que não se esqueça
que o que vem pela dor
e se metabolizado for
transforma a existência...

E é o único jeito, querida,
Pra que você cresça.

Muito do que vem de você
me lembra a mim
numa versão melhorada,
talvez mais leve...

Mas é justamente
no que Bem não Vejo
que me flagro encantada,
ao ver algo de ti
que é seu, só seu,
construção da sua estrada,
que me remete à platéia
a te aplaudir admirada.




numericamente falha



Disseram que no meu início eram 2, mas entre 2, sem que soubessem, éramos 3.
Números enganam... Entre 2, aos sermos 3, vivíamos 5: Ele com o que imaginava de mim; Ela com o que suspeitava a meu respeito, e eu, que dependia dos 4 para um dia me fazer 1.
Cresci querendo ter 18. Aos 20 olhava o mundo de cima do meu salto 15, sentindo 50.
Quando o salto quebra, ando cambaleante, como se tivesse 1. Sentido esvaído.
Para reconstruir algum sentido, aprendi a trabalhar rápido logo aos 13. Fábrica de permanentes provisórios.
Mas aos 22 e aos 26, surgiram 2 que mudariam por completo a lógica do tempo. Barriga crescida, repleta de expectativa, alegria e medo. 2 que me impulsionam a quebrar rigidez de compreensão categórica do mundo. Isso cria lacunas e pede espera com pressa. Tempo de degustação e decantação.
Então me esforço em silêncio, quero En-canto.
Aparições fugazes que sustentam um toque, uma intersecção. Possibilidade de renovação.
Aos 36, fico à espreita dos encontros que promovam falta de palavras como aos 2.
Possíveis estréias na vida.

24/05/2007

nostalgia

A poesia saiu de férias?
Ou tá trancada, de castigo?
Tá amuada num cantinho?
Ou tá cansada do perigo?

Deve estar contida
debaixo do armário,
envolta num saquinho,
sem som, nem volume,
tal rosa sem espinho.

Talvez esteja à espreita,
(recostada num cabide,
enrolada num vestido)
de um sussurro que acredite.

20/05/2007

hysteria

Assisti nesses dias, pela quarta ou quinta vez, o espetáculo Hysteria do grupo XIX de Teatro. Trata-se de uma montagem fantástica, com uma pesquisa histórica apurada de formato poético muito belo. É sempre um novo espetáculo pois, a cada apresentação, o público define o tom de base da atmosfera. O público feminino é convidado a imergir na histeria, ao passo que o público masculino é convidado a se posicionar como platéia.
Outra peculiaridade se refere à incorporação das novidades vindas da platéia no roteiro. As atrizes são "repentistas" que denunciam a possibilidade de lidar com os imprevistos. Aliás são eles (os imprevistos) que constroem a trama do espetáculo. Trata-se de outra espécie de lógica no teatro. E na vida.
A peça se passa no final de 1800, numa época em que qualquer conduta feminina fora dos parâmetros do "bom tom" era considerada histérica. Ex: A moça namoradeira; a casada que não se conforma com a traição do marido; a que exige um plano afetivo mais presente a revelia do lugar de mãe. Todas "histéricas", depositadas num hospital psiquiátrico!
O que mais me assusta é que são apenas 100 anos que nos separam dessa miséria afetiva preconceituosa na cultura .... quanto dela será que ainda não vigora disfarçadamente?

18/05/2007

Enfim Henfil

Li, há algum tempo, uma entrevista com o Henfil na Caros Amigos. Essa figura era realmente espetacular! Dentre outras revelações generosas, ao ser questionado sobre seu "poder visionário", Henfil respondeu com uma imagem certeira: " A Síndrome de galinha".
Para se fazer entender ao entrevistador, Henfil contou um trecho de sua história: Desde pequeno, em razão do quadro hemofílico, precisou desenvolver uma percepção apurada sobre eventuais perigos que corria, a fim de não se machucar, o que poderia se traduzir em morte. Então, desenvolveu uma defesa que nomeou da maneira descrita acima, justificada da seguinte forma: se observarmos uma galinha, veremos que elas se movimentam de maneira quase previsível. No entanto, num dado momento, elas alteram a conduta, mostram-se agitadas, sem motivos aparentes. Parecem desordenadas, andam de um lado pro outro, juntam os pintinhos.... depois de algum tempo, é batata! Uma tempestade disponta ao longe ou uma raposa finalmente se deixa ver. Ninguém mais percebia o perigo iminente, só as galinhas.
Henfil transformou vivências de perigos iminentes numa visão de mundo eminente! O trocadilho, aqui, vale a passagem da sobrevivência para a vivência de situações inusitadas e criativas. Ainda foi gente o suficiente para não se deixar instaurar num modelo idealizado de conduta: todo mundo vê as pingas que tomo; ninguém vê os tombos que levo!
Grande Pessoa!

and now....

Lobão cantou que a vida é melhor vivida "10 anos a 1000, do que 1000 anos a 10". A novidade parece estar contida em cada momento, a cada ínfimo passo. Parece que o grande desafio é manter as papilas gustativas desentupidas. Um bate papo pode ser muito bom, um chocolate quente, uma música, um namoro, um passeio pela feira.

Manter o paladar apurado dá trabalho. Exige a saída do modelo urgente, de uma procura única de solução "para todos os males". Quando as experimentações estão acentadas no desespero (sem espera, urgente) o gosto das coisas torna-se enviesado... O que é doce, vira amargo. Parece que a língua se enrola toda e não consegue identificar de que alimento se trata.

O tumulto tem se agravado, nos últimos tempos, em virtude da impossibilidade de ficarmos recolhidos "pra balanço degustativo". Isso virou depressão; não se pode ficar simplesmente triste! Logo vem alguém que te diz: "Sai dessa! Vamos sair e nos divertir"; o que, noutras palavras, pode significar: não se ocupe do seu paladar, simplesmente engula!
É necessário pararmos de correr do que entra e sai da nossa própria boca.
Tempos difíceis...

15/05/2007

Tempo

Essa poesia não é minha... Infelizmente desconheço a autora... Ouvi há muito tempo e não pude conservá-la na íntegra na memória (como tudo que a memória retém). Mas, na linha da homenagem, deixo aqui o que ficou:

Eu acho que a vida anda passando a mão em mim
Acho que a vida anda passando
Eu acho que a vida anda
Anda passando
Acho que há vida em mim...
E por falar em sexo,
Quem anda me comendo é o tempo

Se bem que já faz algum tempo
Que eu me escondia porque
Ele me pegava à força e por trás.
Até que um dia eu disse:
Tempo, se você tem que comer
Que seja me olhando nos olhos
E com meu consentimento
Acho que ganhei tempo...
De lá pra cá
Ele tem sido generoso comigo
Dizem que ando até remoçando

08/05/2007

Ágata




Uma presença marcante que
Desperta o que adormeceu
Fez uma pergunta
Que muito me comoveu:
Menina, cadê Sua Língua:
O Gato Comeu?

22/04/2007

Notícias da Tabacaria

Fernando Pessoa escreveu um baú de poemas para retratar sua melancolia. Tentativa de elaboração, de empréstimo de símbolo ao inominável? Talvez. Não mostrou boa parte de seus poemas a ninguém. Tabacaria nos faz lembrar que corremos o risco de nos apresentarmos descrentes da idéia de alguém nos ouvir ou entender e passarmos a vida parecendo delegar nosso bem estar a uma fórmula mágica que não existe, como se alguém pudesse vir nos resgatar de um lugar árido, desprovido de gente, esgotados em nós mesmos, sem precisarmos nos esforçar para a saída.

Fernando Pessoa, em sua inesgotável sensibilidade e talento, nos mostra o desdobramento de quando não conseguimos nos alienar um tanto de nós mesmos, aliando-nos de maneira ferrenha através de nossos vários heterônimos, para delatar os fracassos das relações dos outros, dos deslocamentos insanos e deleites efêmeros do mundo dos adultos, do mundo das pessoas que tentam, e que, por isso, estão na rota do acerto e erro. É isso, dentre outros tantos fatores, que faz com que sua obra "nos afete".

Ao ficarmos impossibilitados de nos alienar um tanto do campo das nossas fantasias, caçamo-nos ininterruptamente. Tornamo-nos nosso céu e inferno; gosto e desgosto; alimento e inanição... Neste cenário não se pode ficar a vontade com a própria pele. Pessoa “sabia” que, a todo o momento, a angústia pela vida esvaziada de “sentidos a priori", vela a alma dentro do quarto, tendo a janela como denúncia dos vestígios do mundo estranho, de um mundo incompreensível, cruel ou, no mínimo, banal. A janela é outro, é o olhar do outro, é a compreensão do outro, diferente do olho de quem vê.

Apropriarmo-nos disso se converte na tentativa continuada do esforço por nos traduzir aos olhos do mundo, ou então ficarmos trancafiados em nossos "cômodos" incômodos.

20/04/2007

Instante

por: Elio



Tremo ao te ver passar
Meio sem jeito perco a voz,
Estremeço ao te ver sorrir
Paro de respirar
Desorganizo-me em incertezas
Difíceis de descrever
Foge do consciente
Acho que estou doente, por você
Ansioso, espero outro momento,
Sem saber quando será.
Ansioso, espero outro momento,
Quem sabe prá te dizer...... (te quero)
Sentimentos,
Como encontrar desses o certo?
Se ele existisse!
Quanto futuro ainda teria?
Sinto-me abatido,
Talvez um eterno arrependido
Por não encaixar a fala
Quando mais dela preciso.

12/04/2007

Perda de tempo

_ Moço, me dá meio quilo de alcatra?

_ Senhora, não sei se notou, mas isso é uma padaria.

_ Puxa... não notei... vocês fazem sanduíche de carne?

_ Sim, tem o bife na chapa, filé com queijo e a variação com salada. Todos no pão de hamburguer, francês, no pão de forma, ou ainda o integral.

_ Nossa! Que variedade. Mas se levar pra casa e ficar frio, devo desmontar o lanche pra esquentar e comer?

_ Aí já não sei, minha senhora! Pode comer frio também.

_ Não sei se vale a pena...

_ E aí, a senhora vai querer o lanche ou não?

_ Sabe o que é, moço, faz um tempo que como lanche de carne... essa coisa que deixa os fiapos no meio dos dentes, sacia na hora, dá até uma certa felicidade... Depois passa e lá tô eu com fome de novo.

_ Não posso fazer nada pela senhora. Passar bem.

E foi só nesse momento tardio, depois de muito perturbar o sujeito da padaria, que a digníssima se dirigiu a um açougue.

09/04/2007

apego




Ela: Você me ama?

Ele: Amo.

_ Então me mostra!

_ Como você se atreve a olhar pra aquele cara?

_ Que lindo! Você tem ciúmes de mim!

_ Claro! Você não me desperta mais curiosidade, nem desejo, nem vontade de ficar por perto. Há anos não tenho nada a te dar, mas me deixa enraivecido pensar que um outro alguém possa.

_ Nunca me senti tão amada! Faz de novo? Você me ama?

... ... ... ... ... ... ... .........

30/03/2007

encontro






É algo que escapa da servidão inesgotável
de Eco
e do egoísmo genuíno
de Narciso.

27/03/2007

o t r e m


Um casebre, meia luz, escada rangendo por passos. Portas arrancadas, janelas estilhaçadas. Esperava a visita de um ser disforme. Contrariando o mito de Eros e Psiquê, ao aproximar a luz da face do amante, viu traços horrendos.

A figura não eliciava compaixão, mas piedade... e um tanto de desprezo. Por outro lado, sabia da fragilidade da escolha naquele ser, como uma criança que culpabiliza a bola quando não consegue fazer um gol. O caminho previsível, que ele não se lembrava, era o da sapiência do corpo com seus sinaliza-dores...

Ele disse que ficaria na cidade por ser conhecida. Ela percebeu que ele não poderia sentir saudades do que nunca experimentara.

Ela saiu da cidade fantasma no primeiro trem. Sentou-se na poltrona frente à janela. O cenário gélido desvendava paisagem com árvores secas e lamaçais que indicavam a presença de água... água de outros tempos. Procurou confortar-se. Do que via, vez ou outra, surpreendia-se com a presença de alguns animais à beira da estrada. "Do que viviam? Como se alimentavam?". Naquele instante, vivia inverno mas ilusionava solstício. Ainda estava longe de casa, mas avistava colinas e sinais de presença viva no caminho.

De repente o trem parou. Desembarcou no meio da sala de casa... A TV, ainda ligada, fazia desenrolar à sua frente os letreiros do filme. Acordara do pesadelo.

24/03/2007

Portanto



Enquanto
Canto
Encanto

Lamento
Pranto
Pronto

Sinto
Findo
Assunto

Em mim, ilustre desconhecido

Vivemos num tempo muito confuso. Penso que, se conhecesse um extraterrestre e tivesse que lhe explicar nosso modo de vida, provavelmente me sentiria numa tarefa delicada. Vejamos:

“ Bem vindo, Sr ET, ao nosso humilde planeta. Na verdade não tão humilde... Nem mesmo sei se Planeta por muito tempo. Dispomos de várias formas de vida, mas a classificada como “humana” tem se posicionado como a mais importante. Estamos no topo da cadeia alimentar, ultimamente. Somos predadores de tudo que quisermos. Claro, existem leis que tentam minimizar o risco de agirmos somente por impulso, mas é frequente não atentarmos muito a esses detalhes. Tanto que nossos recursos naturais estão bem mais escassos que noutros tempos. Mas calma, estamos evoluindo deveras cientificamente, o que significa que, em breve, poderemos criar qualquer forma de vida que precisarmos, se “acaso” estiver extinta na natureza.
Nosso desenvolvimento é bastante complexo: nascemos, regularmente, em grupos que nomeamos como família. Neste aspecto evoluímos um tanto, pois antigamente esta primeira célula social deveria, necessariamente, ser composta por um pai e uma mãe, sendo que o gênero da espécie deveria corresponder à função parental. Ganhamos um nome que já vem com uma história que ficará grudada em nosso psiquismo, com direito (ou dever) a ser continuado nas próximas gerações. Herdamos também desejos não realizados de nossos cuidadores primeiros. Este aspecto nos dá muito trabalho, pois ao longo de nossas vidas, quando tudo vai bem, desenvolvemos desejos próprios que se conflitam com os que nos foram atribuídos. Até aí, você pode dizer que a solução é fácil: é só separar o joio do trigo e cada qual que fique com o seu próprio desejo. Mas... Meu caro, as coisas não são tão simples. Os desejos mais contundentes nos são transmitidos de maneira velada. Isso mesmo, tipo propaganda subliminar. Daí que, corremos o risco de passar a vida inteira nos debatendo com idéias das quais só conhecemos, quando muito, o rastro.
Para camuflar esse caos, nos convencemos que a angústia produzida no hiato entre o meu desejo e o do outro - que quer se realizar através do que deveria ser minha vida – pode ser ludibriada com brinquedinhos amplamente difundidos através de marketing. Confesso que alguns deles bem que nos fazem felizes por um certo tempo, até a tal da angústia voltar e retomarmos o caminho do supermercado ou do shopping para tamponá-la novamente.
Mas nem tudo é sofrimento. Existem outros caminhos, como por exemplo, adeptos de realizações artísticas. Esses me dão uma inveja danada porque passam boa parte do tempo elaborando códigos simbólicos decodificantes das sensações e sentimentos que nos arrebatam. Ou que deveriam porque, do contrário, fica impossível construirmos “sentido” para levantarmos da cama diariamente.
Como?
Quer conhecer?
Tem um bar de jazz aqui perto e...”

23/03/2007

Depois dos 30....



Balzac disse que é só depois dos 30 que o que há de mais genuíno numa expressão se acentua.

Já não há mais, depois dos 30, o imediatismo ou a urgência. A tolerância se atrela a um tempo preciso, embora difícil, de espera.

Depois dos 30 a cebola não mais provoca o choro, lágrimas são comedidas mas concentradas.

Talvez bem depois dos 30, arriscar se torna esporádico, mas quando acontece não há arrependimento.

Depois dos 30, muito barulho dá sono e pouco movimento solicita legenda.

Por volta dos 30 as metamorfoses não são visíveis a olho nu, o que se vê é o tempo marcado... mas é preciso perguntar para saber o que significa cada marca.

É só depois dos 30 que se pode contemplar um fenômeno inominável até que ele atinja um grau de metabolismo simbólico, ou não...

Depois dos 30 o dia tem 24 horas, não mais 48 ou 12.


Transcorridas 3 décadas, com a lógica tentando decifrar pathos, percebe-se que as coisas têm permanência desvinculadas de suas funções e pessoas não são o que pensam ser.

Depois dos 30 uma leve melancolia se infiltra no ânimo. Humores refinados preferem ironia; sarcasmo é recurso de gente mais nova.

Depois dos 30 jornadas heróicas viram lendas. O romantismo se reveste de parcimônia e só se despe quando não está só.

Passados 30 anos de gostos e desgostos, o paladar diferencia com astúcia um alimento do fast-food e um doce feito no fogão a lenha. Já se sabe que o doce pode levar um tempo considerável para apurar, mas não se engole tão fácil quando o fogo apaga.

Aos 30 escolhas são diárias: perde-se pelo que não é, ganha-se pelo que se tornou por não saber quem será...

Passadas 3 décadas sabemos, simplesmente sabemos, que bons encontros são possíveis, mas excelentes trocas são raras. O mundo finalmente não é tão grande como se pensa aos 20.

Depois dos 30 descobre-se que partilhar loucuras é bem melhor que “viajar sozinho”. Submissão e flexibilidade são definitivamente distintas.

Se antes dos 30 o outro é estruturante, depois dos 30 o outro é fundamental.

Depois dos 30 o tempo contempla espaços espirais e por isso já se sabe que passar pelo mesmo ponto não representa estar no mesmo lugar.

Depois dos 30 a vida pode ser arte: mais cinema, menos novela; se fotografia for, o relevante visualiza-se no negativo.

O novelo tornado tecido toma forma depois dos 30. Já se pode (deve?!) vestir a própria camisa.

Façam suas Amarras

Com que olhos te olho
Com que olhos me olha
Do que me lembro?
Quem te lembro?
Isso nos aproxima
Aquilo nos afasta
Com que liga
Nos unimos
Com que fala
Nos partimos