20/10/2008


Era uma vez um menino muito comilão. Em restaurantes, por exemplo, ficava tão confuso frente a imensa variedade oferecida no cardápio que cansava de ler e pedia que o acompanhante escolhesse por ele. Tão glutão que comendo macarrão pensava no frango e se flagrava prestando atenção no cheiro do vatapá da mesa ao lado.

Nenhuma roupa lhe caía bem... o menino ficava triste pois a menina que ele gostava estava afastada dele, movimento este que ele passou a chamar de "o momento dela". Ele não tinha percebido que sempre que estava ao lado da menina, sua dispersão continuava, pois seus pensamentos vagavam pelas comidas ingeridas e pelas não provadas ainda.

A mãe levou o menino ao médico. O médico prescreveu um cardápio e um regime. O menino teria que descobrir outras fontes de satisfação que não a comida. Caminho difícil... imposto radicalmente. O que fazer?

Com uma vigilância permanente sobre o que colocaria na boca, o menino passou a ilusionar que comia. Da ilusão, passou à fantasia. Fantasiava fartas ceias, exuberantes almoços, repletos de apetitosas sobremesas. Transcorrido algum tempo, passou a se alimentar de sonhos. Dormia boa parte do tempo e sonhava.... com o pudim, com a cesta de pães, com o sorvete, com o fast food...

Pobre menino! A mãe e o médico estavam satisfeitos com o "sucesso" do tratamento. O menino perdia peso. Como a mãe só permitia que ele dormisse de olhos fechados à noite, o menino passou a fingir que estava acordado. Virou um sujeito ligado no automático, deixando o corpo no lugar onde colocavam, o pensamento na vilância dos atos, mas o sentimento capturado na comida, ou em sua fonte.

O fenômeno foi tomando uma proporção tamanha que o menino passou a se recusar a comer. Sempre que estava próximo a uma comida que lhe parecia apetitosa, mantinha-a distante para preferir imaginar o sabor, a consistência, o aroma...

Isolado em seu mundo entricheirado por comida, o menino automatizado só se deixava alimentar pela mãe sob a crença de que ela sabia o que era melhor para ele. Mas quando o menino ousava experimentar outro sabor, daqueles que tinha sonhado, sentia-se tão culpado que dava um jeito da mãe saber para que ralhasse com ele. Expiava sua culpa assim.

Assim passaram-se os meses, os anos, as décadas...Mudou de escola, de cidade, de país. No final da adolescência começou a cursar medicina. Especializou-se em cirurgia plástica e com o crescimento e mudanças hormonais, nem se deu conta que trocou a imagem do pensamento: da comida para mulheres. Perseverante em seu modo automático, provava algumas namoradas, servindo-as gentilmente a fim de tentar compensar o automatismo.


Automatismo ou continuísmo? Não é que o menino não tinha vontade própria. Tinha sim! Mas ficou tão acostumado a camuflar seus desejos que a voz própria lhe faltava à boca. Num vislumbre do núcleo de seus sentimentos e palavras emprestadas do invólucro de seus pensamentos, uma vez pronunciou: "Sou como um bulímico, como, como, como e digo que foi a comida que pulou na minha boca." Que baita confusão o menino se fazia!

Infenso à honestidade, o menino era farto em verdades.Desenvolveu o recurso da sedução para fazer-de-conta que construía elos afetivos. A "comida", que porventura lhe pulasse à boca, era mastigada, engulida ou cuspida, nunca saboreada.

Nunca conheci esse menino; ele nunca me viu. Soube da existência dele por livros, filmes e histórias. Mas já viu... quem conta um conto....

16/10/2008

Pessoa

A Dor é do Poeta ou da Poesia?


(por Fernando Pessoa)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

11/10/2008

mata

mata adentro
mundo aflora
um arrebata
outro deplora

um arremata
outro desmata
mundo adentro
vida afora

mais Machado

em: "A mão e a luva"
"Sonhará uns amores de romance, quase impossíveis? digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir."

08/10/2008

princípio

A vida é dura! Pra todo mundo! Independente do gênero da espécie: homens e mulheres têm que se virar para dar conta de trabalhar, estudar, cuidar de casa, boa educação dos filhos, aquisição e preservação de patrimônios. Aliás, a palavra "patrimônio" vem do latim patrimonius e tem por significado: herança paterna; bens de família; bens necessários para ordenar um eclesiástico; dote dos ordinandos; propriedade. Caberia falar em "patrimônio" na subjetividade?

Qual seria então a palavra que designaria bens acumulados para o viver bem?

Na certa, não seria seu correlato oposto "matrimônio", pois nesta passagem o sentido na cultura se esvai: união legítima do homem com a mulher; casamento; consórcio; sacramento da Igreja que valida, perante Deus, a união conjugal.

Jesus! Não há palavra na cultura para validar essa herança?

Mudando de pato pra ganço, como diz minha mãe, estava eu ouvindo em alto volume meu Paco de Lucia no carro (música boa não consigo ouvir baixo... acho um desperdício!), quando embiquei na garagem na espera do portão se abrir. Havia uma reunião de pessoas uniformizadas, denotando uma configuração legítima de trabalho. Uma cabeça se volta para a música, os olhos de uma mulher se voltam para o meu carro e ela sorri para mim.

Envorganhada por, inadvertidamente, invadir a tal reunião de trabalho, abaixei o volume do som. A mulher voltou seus olhos para o sujeito que falava ao grupo, não sem antes balançar a cabeça positivamente olhando para mim.

Pequeno gesto de encontro.

Paco de Lucia não serve pra nada quanto ao trabalho que o grupo de pessoas terá que desenvolver. Mas foi um princípio feminino que reconheceu sua presença no ambiente. Princípio que, graças ao deuses, não é de uso capião da mulher, do contrário não existiria Paco de Lucia.

Qual a compatibilidade desse princípio que colore a vida e que não cabe no patrimônio?

Que as próximas gerações nos ensinem.... Amém!

01/10/2008


acordo
renome
retoma
retorno
remonto
meta
remeto
repasse
refaço
impasse
ressinto
registro
desterro
certa cerca
conserto
acorde...