30/03/2007

encontro






É algo que escapa da servidão inesgotável
de Eco
e do egoísmo genuíno
de Narciso.

27/03/2007

o t r e m


Um casebre, meia luz, escada rangendo por passos. Portas arrancadas, janelas estilhaçadas. Esperava a visita de um ser disforme. Contrariando o mito de Eros e Psiquê, ao aproximar a luz da face do amante, viu traços horrendos.

A figura não eliciava compaixão, mas piedade... e um tanto de desprezo. Por outro lado, sabia da fragilidade da escolha naquele ser, como uma criança que culpabiliza a bola quando não consegue fazer um gol. O caminho previsível, que ele não se lembrava, era o da sapiência do corpo com seus sinaliza-dores...

Ele disse que ficaria na cidade por ser conhecida. Ela percebeu que ele não poderia sentir saudades do que nunca experimentara.

Ela saiu da cidade fantasma no primeiro trem. Sentou-se na poltrona frente à janela. O cenário gélido desvendava paisagem com árvores secas e lamaçais que indicavam a presença de água... água de outros tempos. Procurou confortar-se. Do que via, vez ou outra, surpreendia-se com a presença de alguns animais à beira da estrada. "Do que viviam? Como se alimentavam?". Naquele instante, vivia inverno mas ilusionava solstício. Ainda estava longe de casa, mas avistava colinas e sinais de presença viva no caminho.

De repente o trem parou. Desembarcou no meio da sala de casa... A TV, ainda ligada, fazia desenrolar à sua frente os letreiros do filme. Acordara do pesadelo.

24/03/2007

Portanto



Enquanto
Canto
Encanto

Lamento
Pranto
Pronto

Sinto
Findo
Assunto

Em mim, ilustre desconhecido

Vivemos num tempo muito confuso. Penso que, se conhecesse um extraterrestre e tivesse que lhe explicar nosso modo de vida, provavelmente me sentiria numa tarefa delicada. Vejamos:

“ Bem vindo, Sr ET, ao nosso humilde planeta. Na verdade não tão humilde... Nem mesmo sei se Planeta por muito tempo. Dispomos de várias formas de vida, mas a classificada como “humana” tem se posicionado como a mais importante. Estamos no topo da cadeia alimentar, ultimamente. Somos predadores de tudo que quisermos. Claro, existem leis que tentam minimizar o risco de agirmos somente por impulso, mas é frequente não atentarmos muito a esses detalhes. Tanto que nossos recursos naturais estão bem mais escassos que noutros tempos. Mas calma, estamos evoluindo deveras cientificamente, o que significa que, em breve, poderemos criar qualquer forma de vida que precisarmos, se “acaso” estiver extinta na natureza.
Nosso desenvolvimento é bastante complexo: nascemos, regularmente, em grupos que nomeamos como família. Neste aspecto evoluímos um tanto, pois antigamente esta primeira célula social deveria, necessariamente, ser composta por um pai e uma mãe, sendo que o gênero da espécie deveria corresponder à função parental. Ganhamos um nome que já vem com uma história que ficará grudada em nosso psiquismo, com direito (ou dever) a ser continuado nas próximas gerações. Herdamos também desejos não realizados de nossos cuidadores primeiros. Este aspecto nos dá muito trabalho, pois ao longo de nossas vidas, quando tudo vai bem, desenvolvemos desejos próprios que se conflitam com os que nos foram atribuídos. Até aí, você pode dizer que a solução é fácil: é só separar o joio do trigo e cada qual que fique com o seu próprio desejo. Mas... Meu caro, as coisas não são tão simples. Os desejos mais contundentes nos são transmitidos de maneira velada. Isso mesmo, tipo propaganda subliminar. Daí que, corremos o risco de passar a vida inteira nos debatendo com idéias das quais só conhecemos, quando muito, o rastro.
Para camuflar esse caos, nos convencemos que a angústia produzida no hiato entre o meu desejo e o do outro - que quer se realizar através do que deveria ser minha vida – pode ser ludibriada com brinquedinhos amplamente difundidos através de marketing. Confesso que alguns deles bem que nos fazem felizes por um certo tempo, até a tal da angústia voltar e retomarmos o caminho do supermercado ou do shopping para tamponá-la novamente.
Mas nem tudo é sofrimento. Existem outros caminhos, como por exemplo, adeptos de realizações artísticas. Esses me dão uma inveja danada porque passam boa parte do tempo elaborando códigos simbólicos decodificantes das sensações e sentimentos que nos arrebatam. Ou que deveriam porque, do contrário, fica impossível construirmos “sentido” para levantarmos da cama diariamente.
Como?
Quer conhecer?
Tem um bar de jazz aqui perto e...”

23/03/2007

Depois dos 30....



Balzac disse que é só depois dos 30 que o que há de mais genuíno numa expressão se acentua.

Já não há mais, depois dos 30, o imediatismo ou a urgência. A tolerância se atrela a um tempo preciso, embora difícil, de espera.

Depois dos 30 a cebola não mais provoca o choro, lágrimas são comedidas mas concentradas.

Talvez bem depois dos 30, arriscar se torna esporádico, mas quando acontece não há arrependimento.

Depois dos 30, muito barulho dá sono e pouco movimento solicita legenda.

Por volta dos 30 as metamorfoses não são visíveis a olho nu, o que se vê é o tempo marcado... mas é preciso perguntar para saber o que significa cada marca.

É só depois dos 30 que se pode contemplar um fenômeno inominável até que ele atinja um grau de metabolismo simbólico, ou não...

Depois dos 30 o dia tem 24 horas, não mais 48 ou 12.


Transcorridas 3 décadas, com a lógica tentando decifrar pathos, percebe-se que as coisas têm permanência desvinculadas de suas funções e pessoas não são o que pensam ser.

Depois dos 30 uma leve melancolia se infiltra no ânimo. Humores refinados preferem ironia; sarcasmo é recurso de gente mais nova.

Depois dos 30 jornadas heróicas viram lendas. O romantismo se reveste de parcimônia e só se despe quando não está só.

Passados 30 anos de gostos e desgostos, o paladar diferencia com astúcia um alimento do fast-food e um doce feito no fogão a lenha. Já se sabe que o doce pode levar um tempo considerável para apurar, mas não se engole tão fácil quando o fogo apaga.

Aos 30 escolhas são diárias: perde-se pelo que não é, ganha-se pelo que se tornou por não saber quem será...

Passadas 3 décadas sabemos, simplesmente sabemos, que bons encontros são possíveis, mas excelentes trocas são raras. O mundo finalmente não é tão grande como se pensa aos 20.

Depois dos 30 descobre-se que partilhar loucuras é bem melhor que “viajar sozinho”. Submissão e flexibilidade são definitivamente distintas.

Se antes dos 30 o outro é estruturante, depois dos 30 o outro é fundamental.

Depois dos 30 o tempo contempla espaços espirais e por isso já se sabe que passar pelo mesmo ponto não representa estar no mesmo lugar.

Depois dos 30 a vida pode ser arte: mais cinema, menos novela; se fotografia for, o relevante visualiza-se no negativo.

O novelo tornado tecido toma forma depois dos 30. Já se pode (deve?!) vestir a própria camisa.

Façam suas Amarras

Com que olhos te olho
Com que olhos me olha
Do que me lembro?
Quem te lembro?
Isso nos aproxima
Aquilo nos afasta
Com que liga
Nos unimos
Com que fala
Nos partimos